sábado, 24 de agosto de 2019

10º dia – Catequeses do Papa São João Paulo II sobre os Anjos (5ª Catequese: A QUEDA DOS ANJOS REBELDES)





Audiência do dia 13 de agosto de 1986 (Publicada no L´OSSERVATORE ROMANO, ed. port., no dia 17 de agosto de 1986.)

1. Continuando o argumento das catequeses passadas dedicadas aos Anjos, criaturas de Deus, concentramo-nos hoje a explorar o mistério da liberdade que alguns deles orientaram contra Deus, e o seu plano de salvação em relação aos homens. Como testemunha o evangelista Lucas, no momento em que os discípulos voltavam ao Mestre cheios de alegria, pelos frutos recolhidos no seu tirocínio missionário, Jesus pronuncia uma palavra que faz pensar: "Eu via satanás cair do céu como um raio" (cf. Lc. 10,18). Com estas palavras o Senhor afirma que o anúncio do reino de Deus é sempre uma vitória sobre o diabo, mas ao mesmo tempo revela também que a edificação do reino está continuamente exposta às insídias do espírito mau. Interessar-se por isso, como pretendemos fazer com a catequese de hoje, quer dizer preparar-se para a condição de luta que é própria da vida da Igreja neste tempo derradeiro da história, da salvação (como afirma o livro do Apocalipse, cf. 12,7). Por outro lado, isto permite esclarecer a reta fé da Igreja perante quem a altera exagerando a importância do diabo, ou quem nega ou minimiza o seu poder maléfico. As catequeses passadas, acerca dos anjos, preparam-nos para compreender a verdade que a Sagrada Escritura revelou e que a tradição da Igreja transmitiu sobre satanás, isto é, sobre o anjo caído, o espírito maligno, chamado também diabo ou demônio.

 2. Esta queda, que apresenta o caráter da rejeição de Deus, com o conseqüente estado de danação, consiste na livre escolha daqueles espíritos criados, que radical e irrevogavelmente rejeitaram Deus e o seu reino, usurpando os seus direitos soberanos e tentando subverter a economia da salvação e a própria ordem da criação inteira. Um reflexo desta atitude encontra-se nas palavras do tentador aos progenitores: "sereis como Deus" ou "como deuses" (cf. Gn 3,5). Assim o espírito maligno tenta insuflar no homem a atitude de rivalidade, de insubordinação e de oposição a Deus, que se tornou quase a motivação de toda a sua existência.

 3. No Antigo Testamento, a narração da queda do homem, apresentada no livro do Gênesis, contém uma referência à atitude de antagonismo que satanás quer comunicar ao homem para o levar à transgressão (Gn 3,5). Também no livro de Jó (of. Jó 1,11; 2,24), satanás é apresentado como o artífice da morte que entrou na história do homem juntamente com o pecado.

 4. A Igreja, no Concílio Lateranense IV (1215), ensina que o diabo, ou (satanás) e os outros demônios "foram criados bons por Deus mas tornaram-se maus por sua própria vontade". De fato, lemos na carta de São Judas: "Os anjos que não souberam conservar a sua dignidade, mas abandonaram a própria morada, Ele os guardou para o julgamento do grande dia, em prisões eternas e no fundo das trevas" (Jd. 6). De modo idêntico na Segunda Carta de São Pedro fala-se de "anjos que pecaram e que Deus não poupou... e os precipitou nos abismos tenebrosos do inferno, para serem reservados para o Juízo" (2Pd. 2,4). É claro que se Deus "não perdoa" o pecado dos anjos fa-lo porque eles permanecem no seu pecado, porque estão eternamente "nas prisões" daquela escolha que fizeram no início, rejeitando Deus, sendo contra a verdade do Bem supremo e definitivo que é Deus mesmo. Neste sentido São João escreve que "o demônio peca desde o principio" (I Jo 3,8). E foi assassino "desde o principio" (I. Jo. 8,44), e "não se manteve na verdade, porque nele não há verdade" (Jo. 8,44).

 5. Estes textos ajudam-nos a compreender a natureza e a dimensão do pecado de satanás, consciente na rejeição da verdade acerca de Deus, conhecido à luz da inteligência e da revelação como Bem infinito, Amor e Santidade subsistente. O pecado foi tanto maior quanto maior era a perfeição espiritual e a perspicácia cognoscitiva do intelecto angélico, quanto maior era a sua liberdade e a proximidade de Deus. Rejeitando a verdade conhecida acerca de Deus com um ato da própria vontade livre, satanás torna-se "mentiroso", cósmico e "pai da mentira" (Jo. 8,44). Por isso ele vive na radical e irreversível negação de Deus e procura impor a criação aos outros seres criados à imagem de Deus, que satanás (sob forma de serpente) tenta transmitir aos primeiros representantes do gênero humano: Deus seria cioso das suas prerrogativas e imporia, portanto, limitações ao homem (cf. Gn. 3,5). Satanás convida o homem a libertar-se da imposição deste jugo, tornando-se como ´Deus´.

 6. Nesta condição de mentira existencial, satanás torna-se segundo São João também "assassino", isto é, destruidor da vida sobrenatural que Deus desde o princípio tinha introduzido nele e nas criaturas, feitas "à imagem de Deus": os outros puros espíritos e os homens; satanás quer destruir a vida segundo a verdade, a vida na plenitude do bem, a sobrenatural vida de graça e de amor. O autor do Livro da Sabedoria escreve: "Por inveja do demônio é que a morte entrou no mundo, e prová-la-ão os que pertencem ao demônio" (Sb. 2,24). E no evangelho Jesus Cristo adverte: "Temei antes aquele que pode fazer perecer na Geena o corpo e a alma" (Mt. 10,28).

 7. Como efeito do pecado dos progenitores, este anjo caído conquistou em certa medida o domínio sobre o homem. Esta é a doutrina constantemente confessada e anunciada pela Igreja, e que o Concílio de Trento confirmou no tratado sobre o pecado original (cf. DS. 1511): ela encontra dramática expressão na liturgia do batismo, quando ao catecúmeno se pede para renunciar ao demônio e a suas tentações. Deste influxo sobre o homem e sobre as disposições do seu espírito (e do corpo), encontramos várias indicações na Sagrada Escritura, na qual satanás é chamado "o príncipe deste mundo" (2Cor. 4,4). Encontramos muitos outros nomes que descrevem as suas nefastas relações como o homem: "Belzebu" ou "Belial", "espírito maligno", e por fim "anticristo" (1 Jo. 4, 3). É comparado com um "leão" (1 Pe. 5, 9), com um "dragão" (Apocalipse) e com uma serpente (Gen. 3). Com muita freqüência, para o designar, é usado o nome "diabo", do grego "diabellein" (daqui diábolos), que significa: causar a destruição, dividir, caluniar, enganar. E, para dizer a verdade, tudo isto acontece desde o princípio, por obra do espírito malígno, que é apresentado pela Sagrada Escritura, como uma pessoa, embora tenha afirmado que não está só: "somos muitos", respondem os diabos a Jesus, na região dos Geracenos (Mc. 5, 9); "o diabo e seus anjos", diz Jesus, na descrição do juízo final (cf. Mt 25, 41).

 8. Segundo a Sagrada Escritura, e de modo especial, no Novo Testamento, o domínio e o influxo de satanás e dos outros espíritos malignos abrange todo o mundo. Pensemos na parábola de Cristo sobre o campo (que é o mundo), sobre a boa semente e sobre a que não é boa, que o diabo semeia no meio do trigo procurando arrancar dos corações aquele bem que neles foi "semeado" (cf. Mc. 13, 38´39). Pensemos nas numerosas exortações à vigilância (cf. Mt. 26, 41; 1 Pe. 5, 8), à oração e ao jejum (cf. Mt. 17, 21). Pensemos naquela forte afirmação do Senhor: "Esta casta de demônios só pode ser expulsa com oração" (Mc. 9, 29). A ação de Satanás consiste, antes de tudo, em tentar os homens ao mal influindo na sua imaginação e nas suas faculdades superiores para as orientar em direção contrária à lei de Deus. Satanás põe à prova até Jesus (cf. Lc. 4, 3´13), na tentativa extrema de contrariar as exigências da economia da salvação como Deus a estabeleceu. Não é para excluir que em certos casos o espírito maligno chegue até o ponto de exercer o seu influxo não só nas coisas materiais, mas também sobre o corpo do homem, pelo que se fala de "possessos de espíritos impuros" (Mc. 5, 2´9). Nem sempre é fácil discernir o que de preternatural acontece nesses casos, nem a Igreja condescende ou secunda facilmente a atribuir muitos fatos a intervenções diretas do demônio, mas em linha de princípio não se pode negar que, na sua vontade de prejudicar e de levar para o mal, satanás possa chegar a esta extrema manifestação da sua superioridade.

 9. Devemos por fim acrescentar que as impressionantes palavras do Apóstolo João: "O mundo inteiro está sob o jugo do maligno" (I. Jo. 5,19), aludem também à presença de satanás na história da humanidade, uma presença que se acentua à medida que o homem e a sociedade se afastam de Deus. O influxo do espírito maligno pode ocultar-se de modo mais profundo e eficaz: fazer-se ignorar corresponde aos seus "interesses". A habilidade de satanás no mundo está em induzir os homens a negarem a sua existência, em nome do racionalismo e de cada um dos outros sistemas de pensamento que procuram todas as escapatórias para não admitir a obra dele. Isto não significa, porém, a eliminação da vontade livre e da responsabilidade do homem e nem se quer a frustração da ação salvífica de Cristo. Trata-se antes de um conflito entre as forças obscuras, do mal e as forças da redenção. São eloqüentes a este propósito as palavras que Jesus dirigiu a Pedro no início da Paixão: "Simão, olha que satanás vos reclamou para vos joeirar como o trigo. Mas Eu roguei por ti, a fim de que tua fé não desfaleça" (Lc 22,31). Por isso compreendemos o motivo por que Jesus, na oração que nos ensinou, o "Pai nosso", que é a oração do reino de Deus, termina bruscamente, ao contrário de multas outras orações do seu tempo, recordando-nos a nossa condição de expostos às insídias do Mal Maligno. O cristão, fazendo apelo ao Pai com o espírito de Jesus e invocando o seu Reino, brada com a força da fé: não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal, do Maligno. Não nos deixeis, ó Senhor, cair, na infidelidade a que nos tenta aquele que foi infiel desde o princípio.



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